Uma das canções
mais belas da MPB é “Resposta ao tempo”, composta por Aldir Blanc e Cristóvão Bastos e interpretada em
sua versão mais famosa por Nana Caymmi.
A letra
descreve o diálogo entre o misterioso narrador e a figura etérea do tempo.
Batidas na porta da frente
É o tempo
Eu bebo um pouquinho
Pra ter argumento...
O tempo vem ao encontro do
narrador, que precisa usar de um pequeno expediente para ter coragem de
enfrentá-lo. Não é assim conosco também? Quando temos 20 e poucos anos, a vida
parece longa e cheia de possibilidades. Um belo dia, recebemos a fatídica
visita do tempo: em um lampejo, às vezes atrelado a uma doença ou limitação
física, percebemos que não somos mais jovens como antes, que a vida que nos
resta pela frente está se esvaindo, inexoravelmente, como a areia na ampulheta.
Nesse momento, infelizmente muitos escolhem virar as costas e fingir que não é
com eles. Mas não passa de um autoengano, porque como já disse W.H. Auden:
Sim; talvez beber um pouquinho,
que seja, mas enfrentar o tempo e suas armadilhas, com coragem e dignidade.
Mas fico sem jeito
Calado, ele ri
Ele zomba do quanto eu chorei
Porque sabe passar
E eu não sei
O narrador alude a uma dor que
mais adiante deixará explícito se tratar de um amor perdido. O tempo faz troça
da situação e o narrador confessa ao mesmo a superioridade daquele e a sua
incapacidade de superar o ocorrido. O tempo sabe passar, o narrador, não; isto
é, ele não consegue abandonar suas memórias. Não importa quantas vezes alguém
diga para outro: “esqueça fulano(a)”, sabemos que não é assim que a coisa
funciona.
Num dia azul de verão
Sinto o vento
Há folhas no meu coração
É o tempo...
As folhas no coração do narrador
podem ser memórias, dores, cicatrizes.
Recordo um amor que perdi
Ele ri
Diz que somos iguais
Se eu notei
Pois não sabe ficar
E eu também não sei...
Aqui começam, para mim, os
enigmas da letra. Por que o tempo diz que o narrador, assim como ele, não sabe
ficar? Por ser humano e, portanto, efêmero, mortal? Porém, essa resposta não me
satisfaz plenamente, pois mais adiante eu questiono se o narrador é realmente
humano...
E gira em volta de mim
Sussurra que apaga os caminhos
Que amores terminam no escuro
Sozinhos...
O tempo parece de alguma forma
querer subjugar e humilhar o narrador, em parte através de uma descrição
inegável de sua força, em parte através de uma mentira disfarçada sob uma
camada de cinismo.
Respondo que ele aprisiona
Eu liberto
Que ele adormece as paixões
Eu desperto...
Aqui é que a coisa começa a ficar
realmente interessante. O narrador finalmente responde aos ataques do tempo, e
à altura: já não parece mais se tratar de um mero ser humano, mas uma entidade superior,
com poderes sobre aqueles. Mas quem ou quê? Quem liberta? Quem desperta as paixões?
Uma criatura angélica? Outra entidade abstrata, como a alegria, a dor, o medo? Ou
talvez eu esteja indo longe demais nas minhas elucubrações e o narrador esteja apenas
se referindo às suas próprias paixões. Quem tiver alguma ideia, por favor
comente.
E o tempo se rói
Com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor
Prá tentar reviver...
A resposta ao tempo surtiu
efeito, e este foi abalado em sua confiança. O tempo agora não quer mais
passar. Também quer ficar e sofrer, quer aprender a amar, e morrer.
No fundo é uma eterna criança
Que não soube amadurecer
Eu posso, e ele não vai poder
Me esquecer...
Ao cabo, é a vez do narrador dar
uma lição de moral no tempo. Sim, quem não ama, quem não sofre, não sabe
amadurecer. Só quem ama e morre de amor é capaz de se esquecer a si mesmo na
contemplação do objeto amado, a ponto de perder a noção do tempo. O tempo, passageiro
como é, só pode observar e lembrar.
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